Legislação e mercado no Brasil

by belisafigueiro

Por Carlos Augusto Calil*

A demanda da classe cinematográfica brasileira pela intervenção do Estado nos negócios do cinema surgiu com a consciência de que o mercado interno não pertencia ao produto nacional. Os pioneiros nessa ação política foram os jornalistas –  e futuros produtores – Ademar Gonzaga e Pedro Lima. Em 1927 eles já clamavam pela  liberação das taxas de importação de filme virgem e defendiam a exibição compulsória de filmes brasileiros. Argumentavam que dos 14 filmes nacionais produzidos no ano anterior, nenhum havia chegado ao público. A revista Cinearte cunhou então o lema: “Todo filme brasileiro deve ser visto”.

No entanto, a primeira medida adotada pelo governo em 1928 foi exigir a apresentação da programação dos cinemas à censura Somente em 1932 aparecem mecanismos de proteção: a fixação anual da proporção de filmes brasileiros a serem obrigatoriamente incluídos na programação de cada mês e a instituição de uma “taxa cinematográfica para a Educação Popular”.

A Associação Cinematográfica de Produtores Brasileiros (ACPB) formulou em 1934 uma extensa pauta de reivindicações, porém a resposta do governo só veio em 1937, com a criação do INCE – Instituto Nacional do Cinema Educativo, por inspiração do antropólogo Roquete Pinto. Nenhuma atenção foi dada aos aspectos industriais e comerciais da atividade cinematográfica.

Em 1939, a ditadura de Getúlio Vargas instituiu o DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda, com a incumbência de exercer o controle ideológico da mídia e da produção cultural do país. Na área do cinema, impôs a exibição compulsória de um cinejornal de propaganda do regime. Para cooptar a classe profissional, foi regulamentada a exibição obrigatória anual de um filme de longa-metragem nacional de ficção nos cinemas e criada a isenção da taxa cinematográfica para os filmes estrangeiros copiados no país. Ainda sob o mesmo regime, criou-se em 1942 o Conselho Nacional de Cinematografia, com representantes dos produtores, distribuidores, exibidores, importadores e presidido pelo diretor do DIP. Esse Conselho fixou normas ainda hoje válidas: 50% da renda líquida é o preço pago pelo exibidor ao produtor do filme nacional; 20% da receita do produtor é a remuneração pela distribuição nas grandes cidades e 30%, nas outras localidades.

Com o retorno à democracia em 1945, a quota de tela subiu para três longas metragens ao ano, chegando em 1951 à fórmula do “oito por um”. Em 1949, o governo concedia isenção de impostos de importação para aquisição de equipamentos de filmagem e exibição, medida que propiciou, no decênio seguinte, o estabelecimento em São Paulo de grandes estúdios de produção – Vera Cruz, Maristela e Multifilmes. O fracasso da experiência, após um período de euforia, deveu-se principalmente ao tabelamento pelo governo do preço dos ingressos.

Em 1955, o município de São Paulo adotava o incentivo do adicional de bilheteria de 15% sobre a renda bruta para todos os filmes exibidos na cidade com a possibilidade de acumular outros 10% quando fossem filmes de reconhecido valor técnico e artístico.  Mecanismo semelhante seria instituído no Rio de Janeiro em 1964. Os índices de quota de tela foram sendo ampliados: em 1959 atingiam 42 dias por ano, em 1963, 56 dias. As distorções, no entanto, permaneciam: o filme impresso estrangeiro custava mais barato que o filme virgem importado

Em 1962 procurou-se transformar o distribuidor de filmes estrangeiros de adversário em aliado: ficava ele com a opção de ao invés de recolher a intregralidade do imposto de renda sobre remessas de divisas para o exterior, aplicar 40% do valor do imposto de renda devido numa produção nacional, de cuja exploração comercial poderia auferir lucro.Sonhava-se com a inserção do filme brasileiro no mercado internacional, uma vez que esse produtor era geralmente filial de uma major company americana. Embora astucioso tal mecanismo não vingou.

Em 1966, em pleno regime autoritário militar, uma antiga aspiração da classe cinematografia viria a se concretizar: o recém criado INC – Instituto Nacional de Cinema estabeleceu uma política de fomento da produção nacional com a concessão de prêmios seletivos e automáticos, e a fiscalização da exibição. Em 1969 nasceu uma empresa de economia mista, a Embrafilme – Empresa Brasileira de Filmes S.A., com o objetivo de financiar e exportar a produção. Sua principal fonte de receita era proveniente do imposto de renda sobre a remessa de lucros dos distribuidores estrangeiros.

Em 1975, um pacto entre os cineastas e o governo do general Ernesto Geisel estendeu a ação da Embrafilme ao campo da distribuição. Criou-se também o Concine – Conselho Nacional do Cinema, órgão legislador e fiscalizador. Essa Embrafilme fortalecida disputou com as filiais das majors as posições de destaque no faturamento – no final dos anos 1970, início dos anos 80, chegou a alcançar 35% do market share.

A proteção do mercado atingiu então níveis nunca antes alcançados. Entre as medidas mais significativas, embora nem sempre bem sucedidas, havia a que impedia a retirada de cartaz de um filme nacional enquanto ele estivesse obtendo receita acima da renda média do cinema, a obrigatoriedade de exibição de filme de curta-metragem brasileiro acompanhando o longa estrangeiro, e a quota para o filme nacional no então insipiente mercado do home video. Essa política tinha, no entanto, limitações: jamais pôde interferir na poderosa indústria da televisão nacional; e, quando contrariava seriamente os interesses americanos, por ameaças de retaliações aos produtos nacionais nos EUA, era  atropelada.

Uma Embrafilme enfraquecida, juntamente com toda a legislação que a sustentava, foi varrida do cenário político e cultural com uma simples penada do presidente da República que tomava posse em março de 1990.

A reconstrução da rede de sustentação política e econômica ao cinema foi gradual. Inicialmente, surgiram medidas de apoio financeiro à produção por alguns governos municipais e estaduais. Entre 1992 e 93, reergueu-se uma legislação no plano federal que procurava atender a duas vertentes: uma, a tradicional, que prevê a regulamentação do mercado pelo Estado, com a manutenção da quota de tela; outra, mais conforme aos ventos liberais, transferia o controle da indústria ao setor da exibição, afrouxava o critério de classificação de filme nacional e instituía mecanismos de renúncia fiscal para incentivar a produção, por intermédio de ações de direitos de comercialização de filmes negociados na Bolsa de Valores.

A legislação em vigor (Lei do Audiovisual) mostrou-se capaz apenas de restabelecer a produção, que encontra sérias dificuldades para ser consumida, restrita que está a um circuito exibidor que atende apenas  um público elitizado. O cinema brasileiro, que historicamente se alimentou nas camadas populares, perdeu-as para a televisão. Busca agora uma nova improvável aliança, com o jovem consumidor de classe média.

Em 2001, o governo federal criou a Ancine – Agência Nacional do Cinema e atualizou os valores e a incidência da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional, agora referida como Condecine. Duas modalidades chamam a atenção pelos resultados obtidos: a incidência do imposto em 11% nas remessas de lucros ao exterior, quando o contribuinte não optar pelo desconto de 70% do imposto devido ao co-produzir um filme nacional de longa-metragem, e a instituição do incentivo permitindo às emissoras de televisão  por assinatura a inversão de 3% do valor do imposto devido na produção de telefimes.

Em 2003, a entrada da Globofilmes no mercado foi determinante para o crescimento do market share do filme brasileiro – atingiu a expressiva cifra de 22% -, sem que o consumo de filmes estrangeiros tivesse se alterado. Explicitou-se, assim, uma demanda do público por produto brasileiro, que independe da concorrência do estrangeiro. Nesse mesmo ano, a Columbia do Brasil vendeu 23,1 milhões de ingressos, dos quais 11,1 milhões (48%) de filmes brasileiros. Desse modo, não se pode continuar dizendo que ela é exclusivamente uma major company distribuidora de cinema estrangeiro no Brasil – ela é igualmente a maior distribuidora de cinema brasileiro. Quando se examina o pagamento de royalties nesse mesmo ano, esta evidência salta à vista: R$ 5 milhões de reais foram remetidos à matriz, enquanto que R$ 12 milhões foram repassados a produtores nacionais.

A quota de tela, criticada por exibidores e distribuidores de filmes estrangeiros, mostrou-se indispensável, mas nem sempre suficiente, para assegurar a presença do filme brasileiro competitivo no seu próprio mercado. Atingiu 112 dias no início dos anos 1970 e, com recuos e avanços, chegou a 140 dias na segunda metade dos anos 1980. Para 2008, foi fixada em 49 dias ao ano para o cinema de seis salas.

No front televisivo, a força política do eficiente oligopólio das emissoras de sinal aberto continua impedindo a adoção de uma legislação moderna para o setor: o Código Brasileiro de Telecomunicações  data de 1962! Em 1995, a lei da TV a Cabo foi adotada de modo a não ferir os interesses dessas emissoras. No mesmo ano, emenda constitucional separava a regulamentação da Radiodifusão da das Telecomunicações, atendendo aos interesses dominantes no País e contrariando as tendências internacionais.

Mais recentemente, a adoção do padrão japonês para a televisão digital no Brasil seguiu os mesmos passos. Ao enfatizar apenas a alta definição e a mobilidade, não alterando a distribuição do espectro, submetia à conveniência das emissoras de sinal aberto as perspectivas de ampliação dos inúmeros agentes concorrentes. Ademais, inspiradas na primeira Hollywood, as emissoras de TV no Brasil adotam a verticalização, ao enfeixar no mesmo grupo as atividades de produção, distribuição e exibição. Tal prática foi banida da indústria americana de cinema em 1949, por ferir o princípio da livre concorrência.

Bibliografia:

PEREIRA, Geraldo Santos. Plano Geral do Cinema Brasileiro. Rio de Janeiro, Borsoi, 1973.

JOHNSON, Randal. The Film Industry in Brazil. Pittsburgh, University of Pittsburgh Press, 1987.

SIMIS, Anita. Estado e Cinema no Brasil. São Paulo, Annablume, 1996.

*Secretário Municipal de Cultura e professor da Escola de Comunicações e Artes/ USP.

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