Teorizando a recepção

by belisafigueiro

Por Fernando Mascarello*

Fora do Brasil, nos últimos 20 anos, houve forte desenvolvimento dos chamados “estudos da recepção cinematográfica”. Embora a sabida tendência, na pesquisa em cinema, de privilégio ao estético (o “texto fílmico”) em detrimento do econômico e do cultural (os “contextos” de produção e de recepção), mais e mais os pesquisadores investigam as múltiplas facetas do rico, complexo e com freqüência surpreendente processo através do qual a sociedade confere sentidos aos filmes. Tal processo de construção social de sentidos, para cada filme, cada obra autoral, cada cinematografia, é um empreendimento coletivo, atravessado por relações de poder, dado historicamente e produzido por um diversificado conjunto de agentes – o público, a crítica, a indústria, os autores – atuantes nos contextos de recepção das obras

O esforço dos acadêmicos em nível internacional – mesmo na França, bastião histórico da abordagem estética ou “textualista” ao cinema – já implicou a constituição de subáreas as mais diferentes no interior da pesquisa de recepção cinematográfica. Alguns exemplos de destaque são os estudos históricos de recepção, preocupados em agregar, à história dos filmes, a da construção social de seus sentidos; os estudos etnográficos de recepção, que apelam à metodologia como entrevistas e grupos focais dentro de uma mirada qualitativa; os estudos do “entorno fílmico”, interessados na dinâmica dos variados discursos que orbitam ao redor do filme e medeiam sua recepção, como os textos críticos e a “textualidade promocional” (campanhas de marketing, produtos conexos etc.); e os estudos dos fãs, voltados às formas mais intensas e peculiares de relação dos espectadores com obras, astros e autores.

Desafortunadamente, no Brasil, a investigação da recepção cinematográfica é ainda incipiente. Alguns passos já se têm cumprido no intuito de divulgá-la entre professores e pesquisadores de cinema e audiovisual, bem como denunciar o sedimentado “textualismo” definidor de nossa crítica acadêmica. Em grande medida vinculada ao glauberianismo/cinemanovismo e refratária ao estudo do cinema popular, esta última se exercita intelectualmente sobretudo através de uma análise fílmica negadora do aspecto social e histórico da criação dos sentidos fílmicos. Em lugar disso, sua atenção recai sobre os supostos sentidos imanentes da obra, a serem desvelados, para o comum dos mortais, pela autoridade da instância crítica.

Nesse cenário desafiador, creio que um dos objetos mais instigantes, em torno do qual poderia/deveria se desenvolver a pesquisa de recepção cinematográfica no Brasil, vem a ser o da recepção doméstica de nosso cinema nacional. Isto é: os sentidos atribuídos, por nossa sociedade, não a cada filme individual, mas ao conjunto de filmes ao qual denominamos cinema brasileiro – ou, sob outra perspectiva, o impacto social, político e cultural alcançado, no plano doméstico, por nosso cinema nacional. Em outras palavras, deveríamos buscar com urgência resposta a perguntas tão singelas e cruciais como: que pensa o público nacional do “seu” cinema? O que espera dele? Que lugar este ocupa em seu imaginário? Em que medida constitui sua identidade cultural?

No presente trabalho, promovo uma exploração teórica do fenômeno da recepção doméstica dos cinemas nacionais. Apesar de meu interesse primário pela recepção local do cinema brasileiro, lanço-me a esse projeto mais generalizante – aplicável a qualquer realidade cinematográfica nacional que não a estadunidense – em razão das possibilidades comparativas que assim se descortinam.  Penso que o entendimento da relação de nosso cinema com as audiências brasileiras deva ser buscado tendo em vista as semelhanças e, principalmente, as diferenças encontradas em outros contextos nacionais não-hollywoodianos.

Minha exploração teórica procura dar conta, sobretudo, de alguns dos fatores mais relevantes – variáveis a cada cenário nacional – a influenciar a recepção dos cinemas nativos em seus contextos locais. Dentre esses fatores, o mais decisivo é possivelmente o que se tem referido como “cultura cinematográfica nacional” – ou, sob uma ótica mais ampla, “cultura audiovisual nacional”. Proponho que se deva compreendê-la, ao investigarmos a recepção dos cinemas nacionais, em termos da “presença cultural” (isto é, a circulação e o consumo) das diversas vertentes cinematográficas e audiovisuais, nacionais e estrangeiras que a constituem juntamente com o cinema nacional: 1) o cinema hollywoodiano; 2) o cinema popular de outros países estrangeiros; 3) o cinema de arte estrangeiro; 4) a teledramaturgia nacional; e 5) a teledramaturgia estrangeira.

No interior dessa cultura audiovisual local, um elemento-chave está na dicotomia constitutiva, para a maioria das cinematografias nacionais, entre um cinema de arte legitimado em nível doméstico e internacional como digno representante da cultura nacional, e um cinema popular – freqüentemente de inspiração hollywoodiana – segregado interna e externamente.

Além desses aspectos, também procuro contemplar outros fatores determinantes da recepção doméstica dos cinemas locais. Dentre eles, cabe salientar: 1) o sistema de distribuição e exibição audiovisual nacional; 2) a instituição crítica cinematográfica nativa; 3) a constituição demográfica, os repertórios, hábitos, gostos e ideologias das audiências domésticas; e 4) a identidade e a história cultural nacionais.

*Resumo da palestra no “Ciclo de Conferências: Cinema Brasileiro: Desafios Culturais e Econômicos”. Doutor em Cinema pela USP, organizador dos livros História do Cinema Mundial (Papirus, 2006, em 4ª. edição) e Cinema Mundial Contemporâneo (Papirus, 2008), coordenador da Especialização em Cinema da UNISINOS (São Leopoldo, RS).

Saiba mais sobre o Ciclo de Conferências

VOCÊ PODE GOSTAR